Carne Nelore na prateleira de cima

Por Carolina Rodrigues

Publicado na Revista DBO de Março de 2021

Produzir carne gourmet a partir do Nelore selecionado para marmoreio, conectando selecionadores e terminadores às demandas do consumidor de carne premium. Essa é a proposta da Confraria da Carcaça, tema do terceiro Dia de Campo da Fazenda Araponga, localizada em Jaciara (MT) e pertencente ao selecionador Shiro Nishimura. Realizado dia 29 de janeiro, o evento reuniu cerca de 100 criadores e técnicos de várias partes do Brasil para apresentação dos resultados dos 32 anos de seleção do criador, oito deles focados em qualidade de carcaça. “Nosso Nelore vai muito além da carne commodity. Existe qualidade no Nelore, mas ela precisa ser mostrada e comercializada para o mundo”, disse o anfitrião, que, ao lado do produtor Humberto Tavares, da Fazenda Sucuri, de Itapirapuã (GO), tem reunido criadores para provar que o Nelore possui, sim, condições de disputar com o Angus a “prateleira de cima” das boutiques de carne em todo o País.

O projeto Confraria da Carcaça nasceu há cerca de quatro anos e reúne pecuaristas que usam a ultrassonografia como ferramenta para identificar animais capazes de produzir carne de qualidade, seja para seleção, seja para obter melhor remuneração junto à indústria ou participar do mercado de carne premium. São 60 criadores conectados, incluindo 40 fornecedores de genética e 20 proprietários de rebanhos comerciais. Aos poucos, eles estão construindo uma “rede” de difusão genética (já atuam em 10 Estados) e também de comercialização, com venda direta da carne marmorizada de Nelore em dois pontos de venda, um em Mato Grosso e outro em Mato Grosso do Sul. “O que vemos é um projeto com potencial para ir além da entrega de carcaça com alto rendimento para frigoríficos. É uma carne de alta qualidade, que pode chegar à mesa de consumidores muito exigentes”, avaliou Fábio Medeiros, CEO da Cooperaliança, que ministrou uma palestra durante o dia de campo sobre o mercado brasileiro de carne premium.

Elo comum

Liliane Suguisawa, zootecnista e diretora técnica da DGT Brasil, responsável pela aplicação da ultrassonografia nas fazendas do grupo, explica que a Confraria tem avançado porque conecta os selecionadores com a base da cadeia produtiva, possibilitando levantar informações sobre qualidade de carne no abate, o que retroalimenta os projetos de genética. Em quatro anos, já foram identificados cerca de 100 touros melhoradores para características de carcaça, cujo sêmen tem sido utilizado nos rebanhos comerciais parceiros. “São fazendas que já empregam a ultrassonografia como ferramenta de gestão na engorda, o que torna a comunicação com os selecionadores de gado PO muito mais direta, facilitando a integração”, avalia Liliane, garantindo que muitos dos projetos têm obtido bom ágio junto à indústria frigorífica, devido ao maior rendimento das carcaças entregues.

Segundo ela, os primeiros abates ocorreram no ano passado, porque existe um delay natural no ciclo pecuário entre a identificação do touro com potencial genético para marmoreio e a obtenção dos primeiros produtos com essa característica de carcaça, mas um bom volume de novilhos já estariam sendo recriados nas fazendas comerciais. “O que ainda não ocorreu, mas deverá se intensificar nos próximos anos é a consolidação dos projetos de carne com foco nesse ‘Nelore gourmet de alto marmoreio’, destinado ao mercado premium”, diz Liliane.

“Sobre esse nicho recaem as expectativas da Confraria e também seu esforço de fomento”, diz Humberto Tavares, já que a ultrassonografia de carcaça permite a obtenção de medidas como área de olho de lombo (AOL) e Espessura de Gordura (EGS), já usadas de maneira corriqueira na indústria frigorífica, além do marmoreio, característica considerada a “cereja do bolo “do projeto. “Nosso desafio é aumentar a escala e obter maior regularidade na entrega de novilhas que produzam carne de alto valor agregado”, diz o titular da Fazenda Sucuri. Hoje, apenas dois projetos atuando no varejo: o da Estância Celeiro, de Rondonópolis (MT), dona de sua própria empresa de carnes, e o da Fazenda Água Tirada, de Maracaju (MS), que tem entregue seus produtos à rede BigBeef, de Campo Grande, capital sul-mato-grossense.

“Esmeraldas” para o abate

Marco Túlio Duarte Soares, dono da Celeiro Carnes Especiais, há dois anos decidiu criar uma linha específica de Nelore com marmoreio (a Reserva), sem imaginar que ela alcançaria valor 20% superior ao da linha Euro, carro-chefe de vendas da empresa, abastecida por novilhas meio-sangue Angus. Os cortes da Reserva veem exclusivamente de fêmeas jovens da raça Nelore (20 a 30 meses), criadas a pasto com suplementação (não são aceitas dietas à base de subprodurtos do algodão). Devem apresentar grau de marmoreio acima de 3% e acabamento mínimo de 3 mm de gordura. “O consumidor que prova essa carne pela primeira vez não titubeia na hora de comprar novamente, nem se importa em pagar mais, pois sabe que seu processo de produção é praticamente artesanal”.

A Celeiro tem abatido, em média, cinco animais/mês, todos crioulos e fruto da seleção por qualidade de carcaça que Marco Túlio desenvolve em sua fazenda. “É pouco, perto do que processo na minha indústria e do que entendo como potencialidade de mercado, mas o Nelore com marmoreio é meio que ‘esmeralda’: não é fácil de obter. Isso é que o torna tão especial”. Para garantir o abastecimento da linha, Marco Túlio iniciou uma parceria com produtores regionais: ele lhes entrega sêmen de touros provados para marmoreio da Estância Celeiro e recebe 30% das fêmeas produzidas a partir dessa genética. No ano passado, ele recebeu 200 bezerras dos parceiros, que estão sendo recriadas a pasto, recebendo o equivalente a 1% do peso vivo em ração. Elas serão abatidas de maneira escalonada para elevar a escala de cinco para 10 abates/mês em 2021.

Com intenção de fidelizar os parceiros fornecedores, ele criou um sistema de premiação: paga o mesmo ágio oferecido às novilhas Angus (5% acima da arroba de boi gordo na região), mais um adicional de R$ 1 a R$ 2, o representa ágio de R$ 12 ou mais por arroba, resume o dono da Celeiro. “O cliente me remunera na gôndola, por isso faço questão de pagar bem o produtor”. Os cortes da linha Reserva são destinados às lojas da Celeiro em Rondonópolis e Cuiabá, além de “stekerias”, hotéis, supermercados e restaurantes gourmets. “Tenho clientes assíduos por causa desses cortes, cada vez mais reconhecidos por seu terroir [palavra francesa difícil de traduzir para o português, mas que denota diferenciação, jeito diferente de produzir]. A carne do Nelore com marmoreio criado a pasto tem um perfume, um sabor muito particular”, garante o empresário.

Nova fronteira

O conceito de terroir é a nova fronteira da carne de qualidade, segundo Fábio Schuler Medeiros, superintendente da Cooperaliança. Já popularizado no mercado de vinhos para diferenciar produtos com oriundos de determinada geografia, clima, tipo de solo e espécie de uva, o termo vem ganhando espaço no mercado da carne premium. “O terroir é uma combinação de predicados (aroma, textura, cor, sabor) que tornam um produto autêntico. Esse é o caso da carne fornecida pelos animais da Confraria. Eles são diferentes dos obtidos em outros sistemas intensivos pela própria concepção de recria/engorda a pasto. Garantem uma carne com cor mais bonita, uma intensidade de sabor muito marcante, além da característica de marmoreio”, avalia Medeiros, acrescentando que a Confraria alinha interesses comuns de forma muito competente, em torno de um produto realmente diferenciado, que pode se posicionar com vantagens no mercado premium. “O que falta, ainda, é direcionamento, para que o esforço de qualificação e seleção dos bovinos Nelore em quesitos como AOL, EGS, marmoreio não se perca ao longo da cadeia produtiva e esses animais, infelizmente, sejam comercializado como commodity nos frigoríficos Brasil afora”, alerta Medeiros.

Shiro Nishimura explica que a média de indivíduos de seu rebanho que apresentam marmoreio é de 20% a cada safra, por isso, é tão importante o trabalho de multiplicação e difusão dessa genética, assim como a popularização desse conceito entre os neloristas.“Temos um tesouro nas mãos. Como convencer o produtor a usar nossos touros para produzir carne de alto padrão? Fazendo ele experimentar essa carne”, diz o produtor, que já programou o quarto dia de campo da Fazenda Araponga em 2022 para o fomento do projeto, que tem importantes parceiros.

Hoje, as novilhas com alto grau de marmoreio identificadas por ultrassonografia de carcaça recebem o Selo de Origem 100% Nelore da ACNB (Associação dos Criadores de Nelore do Brasil), embora o projeto do grupo seja criar um selo de certificação de carne Confraria. “É natural que isso ocorra em certo momento”, observa Liliane que já teve algumas conversas com o grupo sobre a proposta. “Há um mundo de possibilidades. Podemos compartilhar marca, certificação, fazer alianças e entregar para a indústria. Estamos em um momento de chegada ao mercado, tudo é novo ainda”, diz ela.

Verticalização promissora

A Fazenda Água Tirada, uma das “confrárias”, recebeu a certificação da ACNB pela primeira vez em março de 2019, um ano após introduzir as avaliações por ultrassonografia em seu modelo de criação exclusivamente a pasto, iniciado por Arthemio Olegário de Souza, em 1965, no município de Maracaju, MS. Conhecida pela produção tradicional de Nelore PO no Estado, a Água Tirada decidiu estruturar um programa de carne de qualidade após perceber que a seleção desenvolvida há cinco décadas vinha obtendo números muito aquém do esperado nos programas de melhoramento genético, o que levou a propriedade a buscar novas respostas na ultrassonografia de carcaça.

“Foi aí que descobrimos que estávamos vendendo ouro a preço de carvão”, diz Ana Nery Terra, nora de Arthemio Olegário e diretora do Grupo Água Tirada. Ela lembra que no primeiro lote escaneado, identificou-se 29% de carne com marmoreio acima de 3% e acabamento superior a 5 mm de gordura. “Isso nos fez pensar na possibilidade de vender carne gourmet, já que fazíamos o ciclo completo com a engorda de 600 novilhos mês há alguns anos”.

A fazenda de cria está localizada na região de Porto Murtinho e conta com pastagens bem formadas e bem divididas. A engorda é feita na Água Tirada, em Maracaju, MS (para onde vão os machos) e em outra propriedade em Terenos, (para onde vão as fêmeas). É de lá que saem as novilhas com alto grau de marmoreio fornecedoras de cortes premium para a grife Água Tirada, vendida na Boutique de Carnes BigBeef de Campo Grande (MS). O projeto tem avançado sem pressa. São entregues 10 animais/mês, escala que Ana Nery não pretende aumentar neste ano por estratégia de mercado. Com o preço do bezerro em alta, a opção escolhida foi empenhar novilhas e não abatê-las. A fazenda destina 120 fêmeas/ano para o projeto. Elas são abatidas no mesmo padrão dos animais da Celeiro: jovens (24 a 30 meses), com marmoreio acima de 3,5 e no mínimo 4 mm de acabamento de gordura.

Fábio Medeiros garante que o volume pequeno de abate não é uma exclusividade da Confraria e nem um problema. “Muitos pecuaristas têm a ideia de que, para começar um programa de carne de qualidade, é preciso grande volume de animais. E, na verdade, não precisa. Você pode fazer isso em escala menor, desde que haja constância, uniformidade e autenticidade. Uma série de projetos de Wagyu abatendo dois a três animais por semana, com sucesso, não me deixam mentir”, pondera. O superintendente da Cooperaliança afirma que entregar qualidade dentro do perfil de trabalho que se estabeleceu é essencial. “Talvez não seja possível atingir o nível de marmoreio do Wagyu ou Angus Prime, mas a diferenciação desse produto estará, sem dúvida, na intensidade de sabor superior. Existe um mercado para qualquer tipo de carne no Brasil, desde que ela se relacione com o consumidor no sentido de prometer e entregar”.

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